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Desabafo sobre feridas, relacionamentos abusivos e um cérebro viciado.

Qual a pior parte de uma ferida?


Não sei se você já pensou sobre isso. Sabe, não é o tipo de reflexão que costumamos fazer: “olha, algo ruim aconteceu, mas, qual a pior parte disso que aconteceu?”. Andei pensando quase sem querer e quase obrigado sobre isso, e cheguei a conclusão que a pior parte de uma ferida, é a cicatriz.

Toda ferida dói, sangra, inflama, cria casca, e com o tempo vai parando de doer, fecha, sara, e por fim fica a cicatriz. E a cicatriz, embora sinalize o final de um ciclo (o da dor física, da ferida física), marca involuntariamente o começo de um ciclo novo, sem fim: o da lembrança, o da dor psicológica, o da sensibilidade. E ele não termina. A pele sobre a cicatriz é mais fina, mais sensível. A qualquer contato mais abrasivo, se rompe novamente. Além disso, as vezes está num dia bom e tudo vai bem, e passa a mão sobre a cicatriz e se lembra da dor, e de todos os sentimentos que vieram juntos.

Quando se cicatriza uma ferida profunda, acabamos desenvolvendo um cuidado diferenciado com o local da ferida, seja pelo tempo em que a ferida estava aberta, seja apenas pelo medo de voltar a machucar-se, feridas profundas mudam a forma que nos relacionamos com nós mesmos e muda a forma que nos protegemos: se já machucou um joelho, o resto da vida você forçará o outro e protegerá o que foi machucado.

Agora imagine que toda sua pele é marcada por cicatrizes, profundas. E que as cicatrizes não são visíveis, mas você as sente. E além disso, você se protege de feridas semelhantes, tanto quanto protegemos um joelho que já foi machucado. Esse é o saldo de relacionamentos abusivos e abusos pontuais, de viver com ansiedade, de crises de pânico, e de outros males que nos afligem no escuro: cicatrizes e mais cicatrizes, impossíveis de se enxergar e impossíveis de não serem sentidas.

Agora como explicar ao outro que seu medo de um abraço, é por conta de uma cicatriz nas costas que ninguém vê, mas que a cada abraço você a sente? Ou pedir pra alguém não fazer determinada carícia, determinado carinho, porque é como cutucar com agulha uma cicatriz muito profunda? Ou explicar que sua ansiedade, ou alguns comportamentos, são reflexos de uma pele que mais parece uma colcha de retalhos, retalhada com cicatrizes?

Eu não sei como.

As vezes me pergunto onde e porque mudei tanto. De uma criança alegre, um jovem alegre, ou apenas introspectivo, mas equilibrado, a alguém ansioso, inseguro, desconfiado. Nunca consegui responder de modo satisfatório, mas hoje já tenho uma resposta melhor: minha ansiedade é a manifestação das minhas feridas.

Sei que todos somos ímpares enquanto seres, individuais e únicos. E tenho minha própria individualidade: desde sempre tive um pensamento muito acelerado. Muito. Disso ao longo da alfabetização decorreram vários problemas, o primeiro minha dificuldade de escrever: enquanto criança, queria escrever na velocidade que pensava, não conseguia controlar. Resultado era uma letra que mais parecia rascunho de cardiograma: rabiscos e rabiscos, praticamente inelegíveis, a não ser, geralmente, a mim. E era legível, mais pela minha boa memória do que pela letra em sí: eu lembrava o que tinha pensado quando escrevi, como um código só decifrável por mim mesmo, minha letra não fazia sentido nem pra mim.

Com o tempo, e muitas broncas e muitos exercícios e milhares de cadernos de caligrafia, aprendi a controlar um pouco melhor, a fazer pausas mentais e pensar em frases completas, escrever e pensar na próxima frase, e assim por diante. Parte daí, creio, minha facilidade de escrever em versos, mesmo quando escrevo prosa: eu penso frase, não texto ou palavra.

E embora tenha aprendido a escrever de maneira legível, pausada, não aprendi a pensar mais devagar. Aprendi a organizar melhor pensamentos, mesmo em momentos de caos, mas foi impossível até hoje diminuir a frequência ou “velocidade” do pensamento. O que me leva a soluções engraçadas, quando preciso me concentrar em algo, meu melhor método é me distrair. Encho meu cérebro de informações para que possa me concentrar em algo específico. Por exemplo: tenho lido um livro em inglês, embora não domine totalmente a língua. Para ajudar a me concentrar, costumo ler ouvindo música, de preferência agitada. A música ocupa parte do meu cérebro (que está sempre cheia de pensamentos, análises e conclusões) enquanto a parte que tenho mais controle deixo focada no livro. Soa caótico, mas funciona.

É como nas salas de aula, onde só consigo me concentrar bem se me sento ao fundo, ou se a turma é muito grande, sento no meio, na parede, e de lado. Assim a parte do meu cérebro que não consigo controlar, direciono a observar cada indivíduo, aspecto ou detalhe da sala, enquanto direciono a parte que consigo controlar para prestar atenção na aula.

Quando mais novo, desenhava enquanto ouvia o professor falando, hoje às vezes escrevo, às vezes observo a sala, às vezes simplesmente não estou alí.

Mas qual motivo de falar tanto sobre meus pensamentos? - Contexto.

Antes, por mais acelerado que fosse, eu não era ansioso. Se você é ansioso, se imagine ansioso todo o tempo que está acordado. Some a sua ansiedade um cérebro viciado em detalhes, em enxergar padrões e a quebra deles.

Quer um exemplo absurdo: Sei com precisão de “semanas” em média quando alguém que sigo nas redes sociais se apaixona, entra numa fase de depressão, ou termina um relacionamento, mesmo que essa pessoa não seja relevante para mim ou não passe de um conhecido. É como um algoritmo interno que desconheço os termos e só me retorna resultados: “Fulano não está bem, fulano terminou, fulano vai começar a namorar.”

Quando mais novo, tinha uma espiritualidade “forte”. Com o tempo essa espiritualidade, esse sentir, essa intuição, passou a ser pouco. Passei a questioná-la até entender que não era “sentir”, era ver sem saber que vejo. Era o algoritmo interno criado ao observar padrões que só me devolve resultados.

E isso tem o lado bom, é claro. Sei responder provas mesmo quando não sei bem o conteúdo. Desenvolvo explicações teóricas a eventos práticos com facilidade, e tenho uma certa facilidade em absorver conceitos apenas ao ouvir uma palavra e dividi-la em seus radicais. Além de uma certa facilidade em desenvolver e padronizar processos.

E as pessoas me parabenizam por isso, se orgulham de mim por isso.

Mas também existe um lado muito ruim nisso. Muito ruim mesmo. Já imaginou namorar uma pessoa assim? É como namorar um viciado. Meu cérebro é viciado em informação. Isso é meu dom e minha maldição. Não é uma coisa que posso controlar, ou deixar de alimentar. Tudo é informação. E meu cérebro consome tudo, e quer mais. Cada detalhe, cada padrão, cada mínima alteração é um deleite. E quando menos espero, meu cérebro cospe algum pensamento, alguma afirmação, um questionamento ou dúvida.

Sou, nesse aspecto, semi-esquizofrênico: passo grande parte do dia argumentando com uma voz dentro da minha cabeça. Que é minha própria voz, eu sei, mas que não deixa de ser estranho e às vezes cansativo. Meu cérebro cospe informação processada em mim. Se estou bem, são informações boas, se não estou tão bem, são informações ruins, mal interpretadas, dúvidas infundadas ou fundadas em insegurança, auto-julgamentos e cobranças ruins. E parte de mim se ocupa de dialogar com essas conclusões: questionando questionamentos, derrubando lógicas falhas, repensando conclusões ruins, salvando lógicas e raciocínios bons, e tentando amenizar o sofrimento causado pelos pensamentos ansiosos que me machucam.

E se isso é esgotante e cansativo para mim, imagina aos outros?

Conversar comigo é um exercício de auto-paciência, eu sei. Desmembro e disseco o que me é dito em mil partes, filtro o que foge do contexto, e sempre me sobra mais do que uma interpretação que preciso devolver para sacar a informação pura, para entender. Sei que isso esgota o outro, esgota o diálogo, cansa.

Mas, como fazer?

Como lidar comigo mesmo, lidando com os outros? Como fazer que minha ansiedade e as manifestações dela nessa cabeça viciada, influenciem menos os outros e minhas relações com eles?

Uma das possibilidades, eu sei, é deixar de interagir. Deixar de conversar, quiçá, deixar de me relacionar. Mas seria isso possível? Ou melhor, seria um preço que estou disposto a pagar? E seria um preço que estou disposto a fazer os outros pagarem?

Estou há mais de 12 horas pensando sobre isso ininterruptamente. Sendo que ao menos 7 dessas, deveria ter passado dormindo. E não cheguei a nenhuma resposta, além das listadas, que são impraticáveis.

De qualquer maneira, escrevi esse texto como um desabafo sobre o que é ser eu, o que é ser ansioso, as consequências de um relacionamento abusivo a longo prazo, e as marcas que isso deixa em quem passou por isso.

Sou o que sou pelas cicatrizes das feridas que sofri.

Em outras palavras, minha ansiedade é consequência de estímulos aversivos recorrentes, em um cérebro repleto de vícios e acelerado por natureza.

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